por Zau Maiano, em 2023-10-14

De Barriga para Cima

1. Dipanda

 

Celestina soltou um grito estrondoso, uma mistura de fúria e desespero que pairava no ar. Eu apressava-me a escapar, sentindo a urgência em deixá-la para trás. A cada passada rápida que dava, parecia acelerar o meu coração, enquanto uma comichão irritante alastrava-se pela minha coxa esquerda. A minha saia, outrora impecável, encontrava-se agora rasgada e arruinada. 

Antes mesmo de me deparar com as reclamações e os berros de Celestina, já tínhamos tido uma discussão acesa. Eram cerca de 20h quando desejei sair, mas a minha irmã, mais astuta, exigiu que eu baixasse a saia. Recusei-me a ceder e ela, tomada de raiva, arrancou-a violentamente, desferindo-me golpes fortes. Não restava alternativa senão partir dali.

— Não preciso desta maldita casa! — gritei, prosseguindo com o meu caminho. A distância entre nós já era considerável, e as palavras de Celestina já não alcançavam os meus ouvidos.

— Ela pensa que pode controlar tudo? — refleti, acelerando o passo. Apesar da iluminação vibrante e da música que ressoava em alguns bares da rua, tudo parecia mais ofuscado do que realmente habitado. No entanto, continuei em frente… Até que, subitamente, senti um puxão nas minhas costas, e uma voz irrompeu em gritos: 

— Bia, estás surda? — desequilibrada, afastei-me e deparei-me com Susana, minha amiga.

— O que se passa? — indagou Susana, fitando-me com preocupação. Em silêncio, limitei-me a olhá-la. Estava tão nervosa que mal percebi a sua aproximação.

— Não é nada, absolutamente nada — respondi, evasiva.

— Como assim “nada”? — retrucou Susana, a sua voz transbordando impaciência.

— O que combinamos, afinal? — resmungou.

— Combinamos? — respondi com o nariz franzido.

— Sim, tinhas que vir buscar-me, lembras-te? — disse Susana. Vi-te a passar por mim há pouco, e quem sabe o que passava na tua cabeça.

— O que aconteceu, Bia? — insistiu Susana.

— Nada aconteceu, vamos lá! — respondi, sem prolongar o assunto.

— Hmm, isto é estranho — respondeu Susana. Nesse momento, comecei a caminhar. Susana calou-se e acompanhou-me.

Se algo existisse um bairro que fosse mais vibrante e animado do que o golfe, desconhecíamos, não por não existir, mas talvez por não termos muitas oportunidades de desfrutar de festas noturnas em outros lugares. Mas lá estávamos nós, naquela larga rua que dava acesso à grande zona festiva do bairro. No início da rua, era evidente a fila de rulotes, bares, bebidas e grelhados. 

No entanto, o nosso foco era a grandiosa discoteca Dipanda, uma deslumbrante, com luzes tanto do lado de fora quanto do lado de dentro. Então, fomos nos aproximando cada vez mais… A atmosfera nos envolvia à medida que eu e Susana nos aproximávamos daquele lugar imponente. Até que, de frente para a Dipanda, deparámo-nos com o panfleto gigante que estava na porta, dois seguranças sérios a olhar para a frente, e no grande panfleto estava escrito em letras enormes: 

— Homem (300 ‘Kwanzas’)

— Mulher (Livre).

Então, aproximámo-nos de um dos seguranças, que prontamente pegou em duas pulseiras e colocou uma no meu pulso e a outra no pulso de Susana, e entramos. O ambiente tornava-se cada vez mais festivo. Luzes negras e tudo parecia girar, era como uma embriaguez capaz de te manter em pé apesar das voltas. 

E desfrutamos a noite toda, dançamos como loucas que éramos e bebemos sem parar, havia fumo no ar e uma grande dose de loucura. Dançamos tanto que o tempo parecia não passar. Música alta, senti-me livre, dançava com todas as pessoas. Era daquelas festas em que ninguém pertencia a ninguém, tudo parecia apenas uma celebração de liberdade. Dançamos e dançamos muito… E não me recordo do momento exato, mas apaguei.

 

2. Carnes

 

Não me recordo exatamente que horas eram, mas era de manhã, disso tenho certeza. Ninguém que tenha bebido até cair acorda e tem ressaca na mesma noite. Pelo menos até onde eu saiba. No entanto, após algum tempo, percebi que o ambiente estava estranho. Embora percebesse que já tinha amanhecido, eu estava deitada num lugar fechado e abafado. Tentei recompor-me e decidi levantar, mas minha cabeça estava dolorida demais e não tinha forças para me erguer. Minha boca estava pesada e tentei expressar algo ou resmungar, mas não conseguia falar nada. Meus olhos estavam turvos e via tudo embaciado.

De qualquer forma, não conseguia abrir a boca, e então comecei a sentir algo estranho, algo cobria minha boca. Assustada, tentei mover as mãos, mas elas também estavam pesadas. Fiquei deitada e imóvel. À medida que minha visão melhorava, observei que as minhas mãos estavam algemadas. No entanto, conseguia mexer os pés, e logo senti a humidade do chão, pois estava descalça. Foi então que levei um susto ao tentar mover-me para os lados e sentir um desconforto. Ao olhar-me, percebi estar nua, e senti uma dor intensa, olhando ao meu seio esquerdo, vi feridas, como se tivessem sido feitos com uma faca ou algo semelhante. Estava ensanguentada desde o peito a coxa.

Nesse momento, gritei desesperadamente, mas a minha voz não saía, e com algum esforço, consegui virar-me e encostar minhas costas na parede. Estava fria, mas era a única forma de tentar sair dali… Naquele momento, só pensava: — Eu morri! Eu morri. Chorava silenciosamente. Com as costas na parede, comecei a esforçar-me para me levantar, e enquanto roçava minhas costas na parede, sentia a dor dos arranhões daquelas paredes não rebocadas. E então, ali estava eu, de pé, mas com as pernas fracas. Sentia o sangue escorrendo das costas… Olhei para os meus braços e as algemas causavam uma dor lancinante. Meus pulsos pareciam sem vida, como se tivessem sido martelados. A dor era insuportável. Mesmo sem forças, comecei a caminhar lentamente. Nada ouvia do lado de fora, mas de dentro ouvia máquinas trabalhando e o ruído de correntes.

Então, comecei a caminhar por um espaço amplo e extremamente sujo. Olhei para o teto e parecia uma fábrica muito utilizada. Nesse momento, continuei a caminhar. A porta estava visível a uma grande distância, e à medida que avançava, sentia cada vez mais fraqueza. Até que, bem perto de uma espécie de tanque, vi sacos plásticos pendurados acima dele. Continuei a caminhar, e conforme me aproximava, ficava cada vez mais claro que eram carnes suspensas. Continuei a caminhar incansavelmente. Tudo o que mais queria era sair dali. À medida que me aproximava da porta, notei que ela estava entreaberta, e nesse instante, senti algo que fez meu coração disparar. Barulho de passos. E comecei a virar-me lentamente, mas, não consegui ver nada. Então, retomei a caminhada em direção à porta.

Quando ouvi outro ruído, as lâmpadas do teto se acenderam e tudo ficou claro. Novamente, olhei para trás, e vi que, dessa vez, não conseguia identificar o que ou quem era, mas estava mascarado, usando um avental branco e estava todo ensanguentado. Sem forças, pensei: — Vou morrer aqui. E então, com todas as minhas forças que restavam, tentei correr, mas acabei caindo no chão, ouvindo os passos apressados daquela figura.

Virando-me de barriga para cima, olhei-o enquanto ele, com umas botas enormes, pisava nas minhas mãos, torcendo o meu pulso de uma vez. Gritei, mas o grito de dor foi sufocado pela extensa e resistente fita adesiva em volta da minha boca. Em seguida, ele retirou o pé do meu pulso, aproximou-se e chutou com força a minha cabeça. Perdi os sentidos, mas não desmaiei, estava com a visão embaciada e a cabeça latejante. Foi então que fui arrastada até perto dos tanques, e aquele ser ergueu-me e colocou-me em cima de uma mesa grande. Removeu a fita adesiva da minha boca, mas deixou as algemas. Respirei profundamente, sem forças para qualquer outra coisa. Foi nesse momento que senti sua aproximação novamente e percebi que colocou algo na mesa, próximo à minha cabeça, mas eu não conseguia ver o que era.

Estava deitada de barriga para cima, esperando a minha morte. Comecei a sentir algo escorrendo em direção à minha orelha, então inclinei a cabeça para o lado esquerdo e deparei-me com uma cabeça com os olhos arregalados e cheios de medo, a língua para fora e muito cuspo nos cantos da boca, era a cabeça de Susana… Nesse momento, senti um forte corte, sem anestesia, arrancando minha perna esquerda. Sem resistência, eu morri.







Agora, tenho uma confissão a fazer: hoje é dia 11 de junho de 2023, e já se decorreram 15 anos desde que morri naquele lugar. A polícia, até onde sei, nunca resolveu esse caso. Não é minha intenção assustar-lhe, mas, provavelmente, minha carne deve ter sido consumida por pessoas inocentes e, quem sabe, um dos meus órgãos pode estar dentro de alguém, e esse alguém pode ser você.

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