por Zau Maiano, em 2023-10-13

Feliciano em 2082

1982, Uíge, Angola

 

UM ESTRONDO ecoou pela comuna de Macocola naquela madrugada. Ao amanhecer, as pessoas reuniram-se em frente à casa do Soba Njila Nkabu por um motivo simples: mais uma vez, árvores próximas às residências haviam sido derrubadas. Mesmo tendo a “roça” para as atividades agrícolas, aquilo parecia ser um ato de desobediência às autoridades.

Soba Njila Nkabu havia estabelecido uma regra: as árvores só poderiam ser queimadas a 500 metros das casas, para evitar incêndios. Porém, nos últimos meses, essa regra vinha sendo desrespeitada.

— Quem será o culpado por isso? — era a pergunta mais frequente.

— Ouviste o que falam por aí? — questionou Kabuka, aproximando-se de Kai, um dos jovens trabalhadores da casa do Soba Njila Nkabu.

— Como não? — respondeu Kai, afastando-se. Kabuka era conhecido como “fofoqueiro atrevido”. Os moradores já estavam irritadas com ele. Não causava boa impressão.

Kabuka apenas observou, parecendo não se importar, olhou ao redor na esperança de encontrar alguém para conversar.

— Sabem o que aconteceu? — perguntou Kabuka, aproximando-se de um grupo de jovens.

— Não sei do que falas — respondeu um deles, afastando-se.

— Para onde vais? — questionou Kabuka intrigado. — Sei que sabem de algo — insistiu.

Nesse momento, todos se afastaram sem dizer nada. Kabuka fez o mesmo, disfarçando a vergonha. Então, foi empurrado pelo Velho Kema, que passava rapidamente. Velho Kema era isolado e um tanto ranzinza.

Kabuka apenas o observou, abanou a cabeça e continuou seu caminho. As pessoas que esperavam ouviram um som brusco da abertura da porta da casa do Soba Njila Nkabu. Ele parecia furioso.

— Devemos encontrar o culpado, Meu Povo! — bradou o Soba. — Nós nos esforçamos para cumprir as regras — olhando para cima. — Mas quem desobedece será punido.

Naquele momento, Kabuka sorriu, parecia empolgado.

— Vamos investigar — continuou o Soba.

Mais do que ajudar, Kabuka apenas desejava chamar a atenção. A única coisa que lhe vinha à mente era: “Deve ser o Velho Kema”, mesmo que não fizesse sentido. Kabuka estava determinado a provar que o Velho Kema era o culpado. Ele sabia que, se conseguisse descobrir a verdade, ganharia a atenção e o respeito de todos.

Decidiu então vigiar o Velho, começando a segui-lo e, muitas vezes, observando sua casa.

Num dia, Kabuka encontrou uma oportunidade perfeita. Esperou o Velho sair de casa e invadiu sua residência. Porém, surpreendeu-se ao se deparar com a simplicidade da casa, que consistia apenas num cômodo com uma cama no centro e um cesto onde guardava suas roupas e pertences.

Sem provas, Kabuka fez uma queixa ao Soba, alegando ter visto o Velho Kema negociando com pessoas de outra aldeia, e que tudo em sua casa havia sido transportado naquele mesmo dia. Ainda sem fazer sentido, o Velho Kema foi considerado o principal suspeito.

Grupos Sentinelas foram criados, mas o que temiam continuou a acontecer: “as árvores continuaram a ser derrubadas”. O povo revoltou-se:

— Queremos um rito! — berravam repetidamente, reunidos em torno da casa do Soba.

— Deixem o Soba decidir — ouviu-se a voz de Feliciano da multidão, enquanto ele passava apertado entre as pessoas. Ele era um dos poucos intelectuais da região, tendo frequentado a cidade de Luanda, onde estudou até a 4.ª série.

Conseguindo chegar perto da casa do Soba Njila Nkabu, teve permissão para entrar. Estavam reunidos o Soba, conselheiros e alguns anciãos da região.

— Senta-te — disse o Soba, afastando a cadeira.

— Estamos a enfrentar graves problemas — disse um dos conselheiros — e uma mente tão brilhante como a tua pode ajudar a resolver isso.

— Bem, eu acredito que precisamos continuar com as rondas — disse Feliciano.

— Não vejo a necessidade de fazer mais rondas. Já estabelecemos as regras e as pessoas precisam respeitá-las — retrucou o Soba.

— Concordo contigo — disse um dos conselheiros — Precisamos de medidas severas.

— Minha ideia é agirmos com sabedoria — respondeu Feliciano.

— Não tenho mais tempo para pacifismo. Tenho trabalho a fazer — disse um dos Conselheiros.

— Com todo o respeito, Soba, todos temos trabalho a fazer. Mas se não encontrarmos uma solução mais inteligente, as coisas serão ainda mais difíceis — Feliciano respondeu, levantou-se e saiu.

O Soba e os conselheiros apenas o observaram sem dizer nada. Os dias decorreram e as árvores continuaram a ser derrubadas, o Soba já não contava com a presença de Feliciano, que se limitava a participar das reuniões estratégicas.

O povo continuava exausto e assustado.

Em sua casa, Soba Njila Nkabu ouvia as reclamações, com as portas trancadas e sentado à mesa, aflito e sem saber o que fazer. Além de Kai, poucos sabiam do segredo que guardava: antes de se tornar Soba, ele era um missionário católico, enviado à aldeia para dar continuidade ao legado de seu pai, um dos Sobas da região.

Sem saída, ajoelhou-se e começou a orar fervorosamente, enquanto as pessoas do lado de fora esperavam… até que, bruscamente, Soba Njila Nkabu se levantou e saiu pela porta.

— Já sabemos o que faremos — disse o Soba Njila Nkabu. E todos ficaram atentos.

— Esta noite, iremos todos para a reunião e iniciaremos o fogo — declarou o Soba Njila Nkabu.

Houve um momento de silêncio enquanto a multidão processava o que acabara de ouvir. Então, alguém na multidão gritou: — Isso é loucura! Não podemos simplesmente sair incendiando tudo. Isso causou alvoroço e uma discussão se instalou, com os ecos se sobrepondo.

Mantendo a calma, Njila Nkabu não recuou. — Precisamos encontrar o culpado — disse ele. — E se tivermos que queimar, que seja.

Mesmo que a grande maioria discordasse e considerasse questionável, aquela era a ordem de um líder determinado. Assim, todos se reuniram naquela noite e, diante do amontoado de capim seco, o Soba Njila Nkabu lançou um graveto aceso e o fogo se propagou lentamente, enquanto eles o seguia. A primeira casa que avistaram era a do próprio Soba Njila Nkabu, mas, ao pararem em frente a ela, o fogo dividiu-se em duas faixas, formando um círculo ao redor da casa. Quando deram a volta, as duas linhas unificaram-se e o fogo continuou a se espalhar entre o capim. Causou estranheza que as árvores vivas não eram afetadas, apenas os gravetos, troncos derrubados e o capim seco...

O fogo prosseguiu seu caminho e, de repente, parou de se propagar. Foi então que o Soba Njila Nkabu berrou: — Não é por aqui. Estavam próximos a um riacho e o fogo tomou outro rumo, até avistarem a casa de Kabuka. À medida que se aproximavam, alguns moradores cochichavam: — Ele fala muito, deve ser o culpado? Kabuka estava tenso e, quando o fogo atingiu os pelos de um de seus cabritos amarrados na cerca do quintal, fez um círculo ao redor e continuou. Confuso, Kabuka olhou para as pessoas que lançavam olhares desconfiados a ele. Nisso, Ele tentou apagar o fogo sobre o cabrito, mas foi puxado de volta. O Soba disse em voz alta: — Vamos continuar, esse não é o sinal. E prosseguiram…

Passaram por várias casas e o fogo marcou o mesmo círculo que nas demais. As pessoas ficaram confusas. Já havia se decorrido duas horas desde o início da caminhada e elas começaram a perceber estarem se aproximando do fim da aldeia. Avistaram apenas uma casa, pertencente a Feliciano, e mais uma vez o fogo circundou a casa, desenhando um círculo, mas de forma diferente. Após formar o círculo, o fogo não criou outro caminho, começou a voltar pelo trajeto que havia percorrido, sem deixar brasa alguma. À medida que o fogo voltava à origem, apagava seus rastros, e todos o seguiram de volta.

Ao chegarem ao ponto onde o fogo havia sido iniciado, apenas o graveto lançado ainda ardia. O Soba Njila Nkabu aproximou-se e ajoelhou-se. Logo, o fogo tomou um novo rumo na direção onde as árvores haviam sido derrubadas. Ao se aproximarem, cercaram o que restava de uma árvore quase derrubada, com suas raízes vivas e firmes na terra. Então, o Soba disse em voz alta: — É aqui... vamos receber o sinal aqui. Todos aguardaram ansiosos até que o fogo cessou e o Soba se aproximou para examinar o objeto que estava no tronco. No entanto, não conseguia identificar o que era. Chamou a atenção de todos e pediu que uma fogueira fosse preparada.

Com a luz da fogueira, todos ficaram tensos. O Soba Njila Nkabu ergueu o objeto: eram umas calças. Esperava que o dono aparecesse, mas ninguém respondeu.

— Quem será o dono dessas calças? — perguntou o Soba, sacudindo as calças para a multidão. — Esse é o objeto que o fogo encontrou.

— Mas o que isso significa? — perguntou um dos membros, confuso.

— Significa que alguém entre nós esconde segredos — respondeu o Soba, lançando um olhar sombrio para a multidão.

Nesse momento, o Soba começou a caminhar em volta, segurando as calças, até que delas caiu um livro de bolso. Todos ficaram a olhar e o Soba recuou, apanhando o objeto. Era um pequeno livro em russo, ele conseguiu identificar, mas não compreendia o que estava escrito, exceto por “FELICIANO EM 2082”. Então, o Soba Njila Nkabu berrou: — Felicianoooooo! — E quando todos começaram a procurá-lo, ninguém o encontrou.

E desde aquela noite, Feliciano nunca mais foi visto.

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