por AC Lukamba, em 2023-10-07

O Último Suspiro

 O ÚLTIMO SUSPIRO

 

"A vida é um sopro, se quiser que dure 

precisa aprender a inspirar"

Autor

 

 

Ela conhecia tão bem aquela agitação tanto quanto conhecia as linhas na palma da mão, tanto quanto conhecia os rostos dos filhos, o cheiro das frutas prestes a apodrecer ou a textura do dinheiro verdadeiro. 

Ermelinda não necessitava realmente de ouvir as companheiras gritarem: fiscais. Aquela mudança no ar, os sons dos carros formando uma melodia desgovernada e os passos arrítmicos eram o seu alarme. Um alarme que ela aprendeu a ouvir e a não questionar há anos. 

Por isso ela se ergueu rapidamente, deixando a rodilha de pano em seu ombro cair, e firmou suas mãos sobre as pegas da bacia, de seu sustento, único sustento. Pôs-se a correr sem olhar para trás. As amigas faziam o mesmo e em segundos a algazarra havia aumentado. Mulheres corriam de um lado para outro, acompanhas de suas crianças, suas bacias e o que mais podiam levar. Cada uma por si. 

Ermelinda correu pela rua, pensando apenas em seu negócio e em como poderia alimentar seus filhos se o perdesse. Agora com a bacia sobre a cabeça, alcançou a beirada da estrada e por segundos, apenas alguns míseros segundos, estsvs prestes a alcançar o outro lado do passeio.

Foi quando ela sentiu o pano amarrado a volta da cintura ceder. Instintivamente, ela o agarrou, mas era tarde de mais. O tecido prendeu-se em seu pé e ao ser puxado a fez perder o equilíbrio. Ela cambaleou alguns passos, seguindo a bacia, e conseguiu recuperar a postura. Uma buzina soou alto, ribombando por suas orelhas e fazendo-as pungirem de dor. Era um som estranho, agudo e estrondoso como trovão. Em seguida ela sentiu uma pancada, daquelas de quando se chocava com mobília, mas essa era dez, vinte, trinta vezes pior. Sua pele, seus músculos e tendões comprimiram-se ferozmente, seus ossos estalaram como gravetos secos de uma floresta morta. Tudo isso explodiu em uníssono como um balão preenchido com dor que se alastrou por todo o corpo. 

O frenesi aumentou ainda mais. Ermelinda já não podia ver, ouvir ou sentir qualquer coisa. Tudo havia se tornado numa névoa branca e espessa. Esse vazio se prolongou por anos, séculos e talvez milénios. Não havia nada, apenas o branco. Tudo que podia fazer era pensar. 

Pensou em seus filhos; Zinha, Cassinda e Manuel. Imaginou seus rostos e ouviu dentro de si, uma voz lamentando por não te-los beijado hoje. Ou apenas dito que os amava. Algo cintilou e depois refulgiu mais intensamente que o branco do vazio. Ermelinda fechou os olhos, ou pensou te-los fechado. Se conseguiu, não havia feito diferença alguma. 

O vazio começou a dissipar-se. Surgiram cores vermelhas, verdes, azuis e outras que ela nunca havia visto. Brotaram, também, emoções, sentimentos. Um frio intenso percorreu toda a extensão de seu corpo, como uma corrente eléctrica. Ermelinda abriu os olhos. Confusa, ela tentou entender tudo aquilo. 

Estava de pé a alguns passos de uma multidão barulhenta. Ainda sobre a estrada asfaltada, cujos carros haviam parado. Algumas das pessoas ela conhecia, outras, eram completos estranhos.

O sol era agora uma mancha vermelho-figo no horizonte. As nuvens se acumulavam em pequenas conjuntos volumosos e percorriam toda a extensão do céu.

Ermelinda viu pedaços de sua bacia espalhados por toda a estrada, como pequenas peças de um quebra-cabeça tridimensional. Seus produtos também pareciam ter sido afretados. Maças, laranjas, bananas esmagados no chão. 

— Pronta? — Ouviu uma voz, fina e leve, igual as mais puras das melodias. Apesar de ouvir claramente, ela não conseguia dizer se se tratava de um homem ou mulher. 

 Pronta para o quê? Pensou. Uma silhueta aproximou-se, distinguindo-se de todas as outras. 

Se aquilo era um anjo, certamente, o nome não fazia jus a eles, Ermelinda pensou. Não que ela pudesse entender ou ver, realmente, aquela coisa. Não! Mas sabia dentro de si que não se tratava de alguém como ela. O ser tinha a pele feita de luz que pulsava como um coração, com pequenas frestas de pura luminosidade escapando por entre os buracos. Usava um tecido azul metálico que cobria do abdómen até a raiz dos pés. 

 — Para o além daqui. Para um lugar melhor. O ser apontou para o horizonte.

 — Meus filhos? Ela questionou. Preciso achar meus filhos. 

— Eles estão bem, não se preocupe.

— Não! — bramiu, sentindo seus olhos arderem como se tivessem sido esfregados com jindungo. Tudo parecia mais forte, mais vivo. — Preciso ver eles agora mesmo.

— Receio que isso não seja possível. — Disse o ser. Seu rosto era coberto por uma máscara que Ermelinda reconheceu dos tempos da infância, quando ia assistir a cerimónias com os pais. — Meu dever é encaminhá-la, seja por vontade própria ou não.

O alarme soou, Ermelinda percebeu. Agora ela precisava correr, como nunca. Ela deu meia-volta e fez exactamente isso; correu. Ouviu dentro de si a voz do ser que deixava para trás: Não faça isso, não seja uma das pobres almas que luta para se manter nesse mundo. Ela ignorou isso. Sabia que precisava ver os filhos, nem que fosse a última vez, pensou.

• • • •

 Ela encontrou os filhos fora de casa. Sentados sobre a soleira de pedra da porta. Zinha, a mais velha, sentada com os braços ao redor das pernas e a cabeça apoiada nos joelhos. Cassinda segurava Manuel, o caçula, no colo. Ermelinda riu daquela cena. Ela sabia que a filha era teimosa demais para segurar e cuidar, sozinha, do irmão caçula. Se eu posso, Cassinda também, ela dizia. Mas você é mulher, o irmão rugiria em protesto, e você é um nguimbola mijão e burro, ela rebateria. Essa discussão se seguiria por horas, e Zinha costumava ganhar, era a mais velha.

— Mana Zi — Ermelinda chamou pela filha. No mesmo instante que dissera isso, uma rajada de vento forte soprou.Mas não houve resposta. Nem a atenção da filha conseguiu obter. — Zinha! — Gritou, aconteceu o mesmo.

 — Melhor entrarmos. — a filha disse. — Esse vento tá estranho. 

— Crianças— Ela voltou a chamar. Nada novamente. Os filhos começaram a entrar em casa. Cassinda ergueu Manuel. O olhar do caçula achou o da mãe e ele sorriu.

 — Mamã! — Ele disse. Ermelinda soltou o ar que não sabia estar guardando e soluçou de felicidade, de alívio.

 — Onde? — Indagou Cassinda. Os dois irmãos procuravam pela mãe enquanto Manuel encarava Ermelinda. Então ela percebeu tudo.

— Não têm mais nada para você aqui, minha guerreira. — Ouviu a voz do ser atrás de si. — É penoso, eu sei, mas precisa seguir em frente.  

— São meus filhos, não posso simplesmente abandoná-los.

— Não estou pedindo que os abandone, estou pedindo que os liberte. Se ficar, trará apenas desgraça e sofrimento para suas vidas. Não é isso que ser mãe significa: estar disposta a tudo para o bem deles, até mesmo a deixá-los, se isso os ajudar? Venha. O ser ergueu uma de suas mãos. A porta da casa foi trancada e as crianças desapareceram. As lágrimas agora desciam por seu rosto, desciam sobre suas bochechas e queixo. Ermelinda suspirou. Pelo que pareceu uma vida inteira, o mais longo dos suspiros. O último. Tocou a mão do ser e por mais que isso partisse seu coração, não voltou a olhar para trás.

1 comentários

Adrícia Divalda Gonçalves Neto

Foi muito emocionante mergulhar nesta maravilha.