por Lúcia Carina, em 2022-11-02

Atena

1

— Ah, rapaz, seremos famosos! — Arturo exclamou para Fonsine.

Fonsine parecia vinho; o tempo só o compensava. O cabelo comprido e castanho realçava os olhos cinzentos incrivelmente grandes e redondos. Refugiara-se em rebuçados de menta depois da falência apresentada pelo pulmão esquerdo devido ao consumo excessivo de cigarros, tornando o cheiro dos doces em algo característico. Eu adorava observar todas essas mudanças nele. Desde a boca estreita ao nariz repuxado, Fonsine era uma obra de arte ambulante.

Arturo também sofrera algumas mudanças ao longo dos anos. Deixara crescer uma barba ruiva que o fazia parecer o mais velho do grupo. Continuava o mesmo magricela de há oito anos atrás, mas um pouco mais carismático e confiante. Casara-se e tinha um filho a caminho.

— Cale essa boca e nos ajude a calibrar Atena! — Vi disse em tom de falsa repreensão, igualmente entusiasmada.

Prontamente Arturo acatou ao pedido.

Vi não mudara de todo. Continuava a mesma moça um tanto grosseira de há anos atrás, retomara os estudos após três anos se organizando devido a gravidez inesperada, mas não largara o projeto Atena. E lá estava ela, prestes a terminar a licenciatura e a casar.

Minha aparência também mudara nos últimos anos. Minha pele estava mais pálida, meu cabelo loiro conservava os cachos naturais e uma franja cobria por completo a minha testa deixando meus lábios pequenos e meu nariz alongado com certa proporcionalidade.

O laboratório em que realizávamos as experiências passara para outras instalações na universidade e consequentemente para outro sector. Como pesquisadores e docentes, Fonsine e eu estávamos no comando do projecto, o que permitia trabalhar nele durante a hora do almoço e os tempos em que estivéssemos livres, enquanto que Vi e Arturo revisavam entre seus trabalhos, suas responsabilidades conjugais e Atena. Quando apresentamos Atena como trabalho de conclusão de curso, isso há já cinco anos, Bolonha inteira parecia virada para nós, os alunos que materializariam as viagens no tempo, que desdobrariam as teorias das cordas a fim de enunciar o princípio da gravidade quântica.

Éramos os sonhadores. Aqueles com as ferramentas para dar as respostas as grandes questões que assolaram mentes tão brilhantes quanto Rivelli, Newton, Hawking, Einstein, Eddington… E tantos outros que tentaram descobrir os segredos por trás das leis que regiam o mundo.

Ali estávamos mais uma vez, talvez tão próximos das respostas quanto da certeza de nossa existência, ou anos luz delas.

Minha mão tocou na de Fonsine quando ambos tentamos pegar o marcador mais próximo, nossos olhares se encontraram por breves instantes e pude ver que ainda estava chateado. Este prontamente afastou-se como se quisesse me punir daquela forma, vi-o alcançar Vi e ajudá-la a abrir o dispensador de combustível de Atena.

— Está pronto! — Vi informou sacudindo a poeira imaginária de suas calças. — Vá, vocês os dois, fiquem aí! Rosso, pegue a câmera! — Ordenou olhando feio para nós quando não nos posicionamos tão rápido quanto esperava.

Arturo mostrou o polegar para mim e Fonsine.

— Experiência duzentos e quarenta e quatro. — Fonsine começou, olhando para a câmera. — Pensamos ter conseguido estabilizar Atena. As voltagens foram calibradas para mil e quinhentos e o fluído motriz…

— Preciso ir buscar Live à escola, podemos deixar as considerações para o final? — Vi pediu, impaciente.

— Também preciso passar no mercado para pegar maçãs para Ângela, nos últimos dias os enjoos têm dado connosco em doidos.

Arturo partilhava todos as desvantagens e vantagens da gestação com Ângela, sua mulher, defendendo a ideia de que ambos estavam grávidos.

— Podemos deixar isso para amanhã. — Fonsine sugeriu evitando o meu olhar, sabendo que não estaria de acordo com aquela ideia.

 — Sal, não te importas? — Vi indagou.

Sorri mesmo sentindo meu rosto dificultar o feito.

— Claro… — Falei lentamente. — Tá tudo bem. Podemos terminar amanhã. Vá cuidar da Live, e você, Arturo, pode ir também.

Ambos despediram-se brevemente e lá se foram, deixando-me a sós com Fonsine.

Este limitou-se a organizar o laboratório em silêncio, comecei a fazer o mesmo, ainda chateada. Meu rosto estava franzido dessa forma não podia impedi-lo de expor os meus pensamentos.

Me aproximei do cabo de alimentação de Atena e uma ideia bateu-me a porta.

— Sallie. — Fonsine chamou-me dando-se conta das minhas intenções.

Estava decidida.

— Não vá fazer o penso, por favor.

— Só para ver se resulta. Eles foram embora! Não estão comprometidos com a experiência! — Argumentei olhando-o, minhas expressões estavam menos rígidas devido a ideia faiscante em minha cabeça.

— Pelo amor de Deus, Sallie! Estamos nisso há oito anos! Como assim eles não estão comprometidos?! — Indagou. — Desejas que abdiquem de suas vidas por Atena?

— Seria um grande absurdo pedir-lhes isso, mas esperava um pouco mais de entusiasmo. Estamos próximos de conseguir tudo o que almejamos. — Rebati. — Isso é o trabalho de uma vida, eu tenho o direito de saber se funciona… Nós temos o direito, bolas!

— Estamos nisso há tanto tempo, nada vai mudar se esperarmos mais algumas horas.

— Por que esperar se podemos fazer isso agora?!

 — Estás a ser uma autêntica filha da mãe egoísta!

— Eu é que estou a ser egoísta?! Quem está me evitando há quatro dias por razões egoístas és tu!

— Qual é o mal em querer um filho, Sallie? Onde está o egoísmo em querer ter filhos com a mulher que amo?! — Fonsine explodiu completamente.

— Eu já disse: não tenho tempo para criar um filho agora! — Bradei irritada com aquela discussão absurda. — Você não entende? Não temos tempo para isso. Atena precisa de toda a nossa atenção.

Viu-o suspirar pesadamente, como se estivesse cansado de mais para argumentar. Por momentos o silêncio pareceu tornar o ar muito mais pesado. Seus olhos por fim me encararam e lá estava a mesma expressão, a expressão que dizia que nada mais havia.

— O que aconteceu contigo? — Questionou num tom derrotado.

— Lá estás tu outra vez! — Falei me agachando para alcançar o alimentador.

— Me casei com uma mulher cheia de sonhos, que desejava estar comigo, viajar por toda a Europa e aproveitar tudo que a vida tem para dar. Eu, você e os nossos filhos. Passas os dias presa aqui dentro, tentando realizar um sonho adolescente, sendo uma autêntica filha da mãe para com as pessoas que realmente se preocupam contigo e ignorando por completo os nossos planos… O tempo passa e cada vez mais não te reconheço, Sal.

Suspirei ouvindo-o se aproximar.

 — Pode parecer que faço isso só por mim, mas faço-o por ti também. — Falei tocando a plataforma de Atena. — Com ela tudo quanto sonhamos poderá se realizar. O tempo não será mais um problema, poderemos fazer tudo que sempre almejamos. Ter quantos filhos quisermos, mas não agora.

Fonsine agachou-se ao meu lado e colocou uma das mãos em meu ombro.

— Eu amo-te, Sal. Amo muito, mas não sei se consigo lidar com essa nova fase. — Disse e foi como se mil lâminas atravessassem o meu interior.

Estive a preparar-me para aquelas palavras durante os últimos meses, mas ainda se mostravam igualmente dolorosas. Abanei a cabeça e finalmente encarei-o, meus olhos estavam cheios, mas sorri para o meu companheiro de tantos anos.

— Está tudo bem.

Este afastou a sua mão antes de erguer-se e deixar a sala.

Tentei controlar as lágrimas que se aproximavam por alguns instantes, antes de ligar o cabo de alimentação à Atena. Um pequeno botão de energia planou sobre a plataforma e, diferente do anterior, o alimentador estabilizou antes que Atena começasse a tecer novos botões, que iam flutuando e fixando-se ao mais próximo.

 

 

 

2

Atravessei a fissura e parecia estar no mesmo lugar.

Facilmente poderia dizer que nada havia mudado, se não fosse a ausência de Atena e da maioria dos nossos equipamentos.

— Vou pegar alguns dos planos… — Fonsine adentrou dizendo, antes de assustar-se com a minha presença.

 Seus pés oscilaram até mim em movimentos hesitantes.

— O que fazes aqui? Não deverias estar aqui… — Falou urgentemente, acolhendo meus ombros em seus braços.

Suas roupas cheiravam a nicotina, era estranho pois este deixara de fumar fazia anos.

Olhei-o mais de perto e pude finalmente aperceber-me das rugas salientes em torno de sua boca, pintando sua testa e beijando as extremidades de seus olhos. Seu cabelo castanho e comprido fora substituído por um punhado desgrenhado e acizentado.

— Você não pode estar aqui. Precisa voltar imediatamente. — Falou quebrando o abraço e parecendo menos abalado. — Sabes como voltar para o seu loop? — Questionou e eu estava mais perdida que nunca.

— O que aconteceu? Quando é aqui? — Indaguei. — Onde está Atena?

— Houve um acidente… Mas isso não importa. Precisas voltar!

 Quase que imediatamente um homem de feições estrangeiras, em roupas militares, atravessou a entrada. Seus gestos foram rápidos de mais para que alguma acção fosse realizada. Seus olhos frios sondaram-nos, Fonsine jogou-se para frente e pum! Pum! Pum!

O grito foi involuntário e, como se por magia, já lá não estava. Nem Fonsine, nem o militar, nem o fuzil. Só o meu coração batendo desesperadamente.

Estava no alpendre de uma residência.

Espreitei pela janela ampla ao meu lado e pude ver a minha versão mais adulta brigando com a versão adulta de Fonsine por uma arma.

A porta ao lado se abriu e repentinamente a arma disparou, as versões futuras ficaram estáticas. Fonsine segurava a arma.

Vi o corpinho de cabelos ruivos procurar auxílio antes de tombar e a versão mais velha de Arturo e Ângela alcançarem-no em completo pânico.

Pestanejei sentido as lágrimas me cegarem antes de dar-me conta do cheiro a fumaça empregando no ar. Casas estavam destruídas, algumas pegavam fogo, pessoas corriam desesperadas tentando refugiar-se dos militares estrangeiros que invadiam casas e capturavam quem estivesse a vista.

O cenário era pós guerra.

 Fui detida por um daqueles homens. As feições estrangeiras seriam facilmente confundidas com as americanas. Este dirigiu-se a mim em russo, nada sabia sobre o idioma então limitei-me a revistar os meus bolsos em busca do passe universitário. Este arrancou o cartão das minhas mãos e lançou-me um olhar estranho, antes de apontar o fuzil para mim e berrar ordens. Senti meu estômago revirar quando o cano da arma tocou o meu dorso. Forcei minhas pernas a darem os primeiros passos e, em seguida, todos os outros. As pessoas presentes naquele Itália em ruínas olhavam-me curiosas e preocupadas, mas nada faziam.

O cenário mudara mais uma vez.

Estava num armário.

Espreitei pelas brechas do mesmo e vi que me encontrava na sala do clube, o lugar estava igualzinho a como me lembrava. Os sofás velhos e a mesa da cafeteria que Fonsine usava como secretária estavam ali confirmando minhas deduções.

— Sal, você aceita entrar para o clube e ajudar-nos na demanda a busca pelas respostas universais? — A versão adolescente de Arturo indagou teatralmente.

Parecia que atravessara o loop do passado. Talvez pudesse mudar tudo. O diálogo decorreu exatamente como me lembrava, empurrei a porta do armário na tentativa de avisá-los sobre as coisas que aconteceriam caso construíssem Atena, mas antes mesmo de tocar a porta meu corpo transpassou-a como se fosse um fantasma.

Olhei para as minhas mãos espantada com o acontecido e decidida a chegar até o meu eu passado, mas de nada serviu, assim como a porta, parecia que estávamos em planos diferentes. Não podia mudar o passado.

— Então, Sal? Aceita fazer parte dos Ceos? — Fora Vi que indagou.

— Claro! (Não) — Respondi.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

3

Meus olhos reviraram a procura de auxílio, mas nada fazia sentido. A dor em minha cabeça se estendia por todo o meu corpo.

— Sallie. — Fonsine sussurrou bem perto de mim, uma de suas mãos fazia pressão em minha testa, seu rosto estava pálido e seus olhos, vermelhos. — Tá tudo bem, vais ficar bem. Já chamei a ambulância, estão a caminho.

— O que aconteceu? — Murmulhei sentindo minhas lágrimas queimarem meu rosto.

— O alimentador não aguentou. Explodiu quando acionaste-o, mas vai ficar tudo bem. Já chamei os paramédicos. — Falou quase como um mantra.

— Me prometa que vai destruir Atena… — Sussurrei pois sentia que tinha pouco tempo.

Lutei contra as dores que me cercavam para poder segurar sua mão.

— Me prometa.

— Eu prometo. — Assegurou, beijando minha mão.

— Eu lamento por tudo. — Disse antes da escuridão me alcançar.

 

0 comentários

Sem comentários