por Alfredo Dobia, em 2021-07-07
RELATOS
Todo mundo tem um
segredo guardado no mais profundo âmago da sua alma e durante anos eu escondi o
meu, escondi dos meus pais, dos meus irmãos e todos. Não sei em que momento caí
nesse poço, só sei que sair dele tem sido a minha luta nos últimos dias, isso
porque os meus demónios se tornaram ávidos e vorazes, não se saciavam
facilmente. Durante todo esse tempo eles vêm devorando minha alma, destruindo
os últimos pensamentos de pureza que restavam em mim. Eu permiti e agora não
passo de uma marionete deles, e isso faz de mim penas um corpo vazio e oco.
― E foi dessa forma
que consegui ficar mais um dia sem usar as drogas... – concluiu um rapaz de
mais ou menos a minha idade. Seu depoimento havida deixado as pessoas felizes
em ver que ele realmente estava em recuperação.
Era a minha primeira vez. Nunca achei que
algum dia fosse me meter numa sala de secções terapeutas, e confesso que ainda
não estava pronta para falar mas não tinha mais jeito. Já não me restava nada
mesmo. O que mais poderia recuperar? Meu corpo e minha alma não passavam de uma
casca vazia. Naquele momento me perdi em pensamentos como muitas de várias
vezes. Eu sonhava acordada com a podridão de cada lembrança “Perdi tudo e o
único sentimento que tinha de mim era nojo”.
― Natália, alô! –
Chamou a profissional de saúde mental que acabava de me libertar dos meus devaneios.
Eu
não sabia o nome dela, ela era bem bonita e sua voz transmitia uma certa
confiança a todos naquela sala. Sem sombras de dúvidas ela era uma profissional
e de modo fácil conseguia construir um espaço seguro para que os pacientes
pudessem se expor de ante das outras pessoas com maior facilidade e
naturalidade, pude notar isso no olhar do rapaz que acabava de falar. Ele mirou
seu olhar em minha direcção e de seguida todos ao meu redor fizeram o mesmo
como um acto ensaiado, uma coreografia merecedora de aplausos. Engoli em seco, vários
olhares deprimidos e por alguns segundos me senti em casa. Mas só por alguns
segundos mesmo.
― Sim. ―
respondi.
― Mais uma vez seja
muito bem-vinda ao nosso grupo de reabilitação ― começou a moça em introdução...―
eu sou a Yara Vunge. Sou psicoterapeuta e tradutora. Aqui no nosso centro de reabilitação
nós recebemos pessoas de diferentes áreas do mundo que não sabiam falar muito
bem o inglês e às vezes é necessário uma tradutora porque o nosso tratamento baseia-se
em ouvir as pessoas falando dos seus vícios e que procuram um lugar que os
ajuda a se libertar deles, admitindo a sua situação em público e ouvindo a dos
outros de modo a saberem que não estavam só.
Achei
aquilo bem interessante, inclusive o sobrenome dela. Não me pareceu inglesa
como muita gente. Ela tinha traços africanos. Mas seu sotaque era excelente. Eu
queria ir embora mas realmente havia gostado dela. Quis perguntar quantas línguas
ela falava. Não o fiz, provavelmente ela interpretaria que eu não queria falar
e com certeza não estaria errada. Apesar da confiança que ela transmitia, eu
ainda não queria falar até encontrar um jeito de fugir daquilo e começar a
falar uma outra língua diferente do inglês. Tinha esperança de que só ela me
entenderia, já que todos me pareciam bem britânicos mesmo, e evitar os olhares
de pena pra cima de mim. Respirei fundo e falei:
― Eu sou viciada em
pornografia. ― Falei de repente em português. Olhei para as pessoas e me
perguntava se elas haviam entendido o que eu acabava de dizer. Mas fui infeliz
com minha ideia estúpida. Ela havia repetido o que eu havia acabado de dizer. A
doutora acabava por traduzir tudo para todos ao redor.
Me senti uma burra
ao entender a lógica dela ser tradutora. Não poderia voltar atrás, meu
português não era perfeito mas eu sabia me virar muito bem, então disse a ela
que eu havia chegado a Inglaterra faz poucos dias e que apesar dos meus pais
serem britânicos, eu saí muito pequena de lá devido a minha mãe que prestava
serviços comunitários como médica em África mais propriamente em Moçambique e
eu aprendi a falar melhor o português do que o inglês. Mas como disse, era tudo
mentira mesmo, eu era apenas uma amante da língua portuguesa que estuda
apaixonantemente pelo Duolingo.
― Continue. ― Disse ela ao notar que
eu parecia relutante para prosseguir.
Ela se esforçava para me deixar
confortável e não queria ser inconveniente. Na verdade bem lá no fundo eu
sentia que precisava falar, então continuei:
― A pornografia literalmente destruiu
minha vida ― comecei fazendo pausas leves enquanto ela traduzia... ― comecei a
assistir aos 11 anos. Naturalizava tudo aquilo achando que era inofensivo. Mas
me enganei, e me enganei feio.
As pessoas ao
redor estranharam ao me ouvir, aquilo provavelmente não era comum de se ver em
secções de grupo. Era um tema sensível de mais para a sociedade mas apesar dos
olhares todos sobre mim, eu prossegui:
― Fui estuprada pelo meu primeiro
namorado e abusada por vários outros que também consumiam pornografia.
Acreditava que tudo que eles faziam comigo era o normal, porque aprendi na
pornografia que sexo era aquilo mesmo. Eu chorava de dor, pedia pra parar, mas
ainda assim eles me faziam acreditar que eles estavam certos e o problema era
comigo, que eu era doente por não gostar do que eles faziam. Foram três assim,
seis anos da minha vida... ― a medida que eu falava, eu conseguia ver. Ela
estava se segurando, estava fazendo um esforço e tanto para não se abalar. Eu
conhecia muito bem aqueles sinais. Várias vezes meu psicólogo demonstrava tal coisa.
No entanto, o mesmo não poderia dizer dos outros pacientes ao nosso redor. Três
deles não conseguiam se conter e deixavam lágrimas dançando sobre seus rostos
em ritmos melancólicos.
― Hoje eu recorro a pornografia quando
meu psicólogo está...― fiz uma pausa por uns instantes, buscando a frase na
minha cabeça... ― abalado. Quando meu psicólogo está abalado... ― repeti
sorrindo de forma sádica ao me dar conta que errei a pronúncia. ― É um vício realmente
― disse prosseguindo... ― Masturbação não me faz sentir bem, mas eu entrei num ciclo
e buscava sempre por vídeos mais violentos. É como se eu usasse pra me
torturar. Não é bom. Não sinto nada de bom. Eu normalmente consigo passar
semanas de boa sem assistir, mas aí vem uma crise de ansiedade, várias noites
sem dormir. Eu começo a querer ver de novo só pra aliviar a tensão e tentar
dormir, mas além de não funcionar eu ainda termino me sentindo um lixo por ter
assistido.
Conclui jogando
meus olhos para o rapaz que me antecedeu. Seus olhos ilustravam um tom insólito
igual o de uma senhora que estava a minha frente. Normalmente após um
depoimento eles batiam palmas pela coragem, mas naquele instante todos pareciam
em transe, como se acabassem de ouvir um discurso sobre a morte. Talvez tenha
sido. Eles me encaravam atentamente. Deduzi que se perguntavam como eu havia
aguentado conviver sozinha com isso por tanto tempo até a terapeuta cortar o
silêncio com palmas e rapidamente os outros pacientes se juntarem a ela,
transformando seus aplausos em melodias sinfónicas.
― Você foi muito corajosa em contar
isso pra gente logo no seu primeiro dia Natália! ― Yara me disse abrindo um
sorriso sublime para mim.
Não sabia se me expor do jeito que
acabava de fazê-lo era um acto que me arrependeria depois, mas naquele momento
eu queria aproveitar a leveza que meu corpo por falar o vivo e penso a anos. Olhei
para todo mundo e agradeci de todo coração por me ouvirem. A luta é árdua, mas eu sei que posso e vou
conseguir ultrapassar.
Fim…