por Arnaldo Correia, em 2022-11-02

AQUI SE FAZ, LÁ SE PAGA!

AQUI SE FAZ, LÁ SE PAGA!

“Cacóngua, eu quero que aprendas que nessa vida não podemos ter tudo o que queremos. Entenda que teremos mais desejos que realizações e isso nunca nos deve levar a fazer coisas que corrompam nossa dignidade. Aprenda a respeitar e aceitar o momento dos outros, um dia chegará a tua vez. Não tenha vergonha do que tens e não desejes mal a quem está acima ou esteja tendo mais privilégios que você, alegre-se com a victória dos outros e aprenda a usar degraus porque elevadores, elevam benefícios sem sacrifícios e, elevam dores na mesma intensidade que se adquiriram os benefícios.”

E lá estava Wapama, dando um dos seus sermões matinais. Sempre fazia questão de garantir que sua linda filha não tropece e nem passe pelos mesmos caminhos que ela teve de passar. — mas se for para ser como ela é hoje, não me importo em passar pelo que ela passou! — Dizia Cacóngua com muito orgulho da incrível mãe que tem.

Naquela manhã, o Reino estava muito agitado, ouvia-se que o inimigo tinha invadido o Reino, enviando uma espiã. Todos admiravam: “como eles tiveram a coragem de enviar uma fêmea para invadir o nosso território?”, “Como foram capazes de nos subestimar tanto ao ponto de enviar essa petiza para nos espionar?”. Cada um demonstrava seu descontentamento pela tamanha falta de respeito que o Reino Yo Keulo teve para com o Reino Yo Pofi.

— Então minha jovem, pelos ferimentos que apresentas nas tuas asas e essa tinta jogada no seu rosto, percebe-se claramente que vens do Reino Yo Keulo e foste enviada para nos espionar… ­— disse o Rei Mbândua olhando com desconfiança para pobre ave que claramente não sabia o que se estava a passar.

— Eu só quero voltar para casa! — Respondeu a ave, trêmula, ofegante e quase já sem forças.

Ela sangrava, sua asa direita estava quebrada e parecia que era um ferimento causado por uma pedra, mas o povo insistia em dizer que tudo aquilo não passava de um plano arquitetado pelo Reino Yo Keulo, seu maior inimigo, pois tudo que os habitantes do Reino Yo Pofi planejavam, os habitantes do Reino Yo Keulo espionavam e levavam a informação a outros reinos que acabavam por arruinar todo tipo de plano do Rei Mbândua.

— Vou perguntar pela última vez. O que vieste fazer no nosso Reino? — Perguntou o Rei já impaciente. ­— Como te chamas? — Continuou, tentando descobrir a sua tribo para saber com que cidadã do Reino Yo Keulo estavam lidando.

— Eu sou Wimbo, da Tribo Cuimba, do Reino Yo Keulo e não vim fazer nada de mal. Fui atingida por…

— Ela é inimiga. Matem-na… — gritava o povo em um grande tumulto.

Cacóngua era muito nova naquele meio, quase nada sabia sobre o conflito que existia entre esses dois reinos, mas o que ela tinha a certeza é que aquela pobre ave ali prestes a ser apedrejada até a morte, era inocente. Então, tencionava fazer alguma coisa para evitar uma morte injusta.

— Párem! Por favor, párem! ­— Todos olharam para ela, admirados. Como uma macaquinha tão pequena que mal sabia saltar em galhos sem cair, está ali a impor!?

­— Por favor párem. Vocês não conseguem perceber que ela está com medo e claramente não sabe absolutamente nada do que vocês estão aí a dizer? Se realmente ela tivesse sido enviada para nos espionar ela não pediria ajuda e nem se entregava de bandeja. Vocês não acham que estão a julgar muito mal esse livro pela capa? — Rebateu Cacóngua franzindo a testa e de seguida olhou para o Rei, sentindo seu coração pulsando a mil, não acreditava que estava a dizer tais coisas.

Sua Mãe ficou de boquiaberta. Talvez estivesse se perguntado: “Onde ela foi buscar tanta coragem para enfrentar o Rei e todo Reino?”. Não tem como, ela é a Cacóngua, filha de Wapama, da tribo Yombembua, do Reino Yo Pofi e sua força vinha desta guerreira.

— Eu peço ao Rei que não faça nada contra essa ave, vou levá-la para minha casa, cuidá-la e quando estiver bem, ela irá nos contar toda história de como chegou aqui e se ela estiver a mentir eu vou descobrir, afinal eu fui preparada para isso. — Disse Cacóngua, receosa, mas confiante.

— Está bem! — Respondeu o Rei depois de conversar sobre o assunto com seus conselheiros. — Nós vamos deixar que ela vá contigo e ficará sob teus cuidados, mas se alguma coisa acontecer com o Reino, você e sua Mãe serão banidas e marcadas para nunca mais serem acolhidas noutras tribos do Reino. — Rematou o Rei olhando para Cacóngua com admiração e respeito pela coragem.

Depois daquele momento tenso, Cacóngua e Wapama levaram Wimbo em sua casa e começaram a lhe cuidar. Seus ferimentos estavam muito abertos, mas graças as ervas medicinais de Wapama, em pouco tempo os ferimentos cicatrizaram.

Wimbo passava muito tempo com Cacóngua e ela contou como foi lá parar, dizendo que gostava sempre de voar sozinha, apreciar a natureza e conhecer coisas novas e, naquele dia ela apenas parou numa árvore tentando descansar para ganhar forças e voltar p’ra casa, mas distraiu-se e não deu conta dos caçadores que estavam naquela região que em poucos segundos atingiram-na com uma pedra aguçada e quase tiravam sua vida. Mas ela resistiu, ainda com a asa quebrada conseguiu voar alguns quilômetros e já não aguentando mais, sem forças, caiu no Reino Yo Pofi sem saber que havia uma desavença com seu Reino.

Wimbo era uma ave muito linda, uma pomba para ser mais específico e no seu Reino, sua tribo desempenhava o papel musical, ela tinha uma voz de arrepiar, seus cantos atingiam todos os cantos do Reino e sempre teve um lugar privilegiado no Reino Yo Keulo, e ela fazia jus ao seu nome, Wimbo, que traduzido do Suaíli significa Canção ou Hino.

Naquele pouco tempo em que ela ficou no Reino Yo Pofi, Wimbo conquistou a confiança e o carisma de todo Reino tanto mais que foi a voz principal entoando o Hino Matrimonial do Casamento do Príncipe daquele Reino.

Passados algumas semanas, Wimbo já estava bem, suas asas estavam saradas e já podia exercita-las. Mas, Cacóngua não estava feliz com os créditos que Wimbo estava tendo no seu próprio Reino. Então, decidiu arquitetar algumas armadilhas para fazer envergonhar e humilhar Wimbo.

— Wimbo! Já que estás curada e suas asas estão cem por cento funcionais, proponho-te um desafio. — Disse Cacóngua com uma pitadinha de maldade na sua expressão facial.

— Não tem problema. Qual é o desafio? — Perguntou Wimbo sem saber o que lhe aguardava.

— Ora bem, vamos fazer o desafio de saltos. Vamos saltar em vinte árvores saindo de galho em galho e depois de chegar à meta, cada uma vai ter que cascar um cacho de Banana e distribuir para dez macacos da plateia. — Disse Cacóngua esperando que Wimbo negasse o desafio para que assim a vergonha fosse maior, porque naquele Reino negar um desafio é sinónimo de fraqueza e covardia.

Então Wimbo aceitou o desafio. E como já era de se esperar, Cacóngua esteve melhor. Suas habilidades como Macaco não se podiam comparar com as adaptadas de Wimbo. Ela tentava agarrar um galho, coitadinha, não conseguia, foi tentando e caindo até que conseguiu chegar à meta, mal chegou à meta a macaquinha Cacóngua já tivera cascado todas bananas, servido à plateia e estava lá na bancada zombando e rindo de Wimbo.

Cacóngua em fim tinha conseguido se vingar. Pois, o facto dela não conseguir o que Wimbo em pouco tempo conseguiu, deixava-a enciumada, invejada e muito humilhada. Mas, sua Mãe percebeu que sua filha estava perdendo a noção de empatia, humildade e amor ao próximo. Então, naquela manhã, Wapama decidiu sentar com sua filha e passar-lhe algumas lições de vida.

— Cacóngua, eu quero que aprendas que nessa vida não podemos ter tudo o que queremos. Entenda que teremos mais desejos que realizações e isso nunca nos deve levar a fazer coisas que corrompam nossa dignidade para obter o que queremos e muito menos chegar a invejar o outro por ter o que não temos. Aprenda a respeitar e aceitar o momento dos outros, um dia chegará a tua vez. Não tenha vergonha do que tens e não desejes mal a quem está acima ou esteja tendo mais privilégios que você, alegre-se com a victória dos outros e aprenda a usar degraus porque elevadores, elevam benefícios sem sacrifícios e, elevam dores na mesma intensidade que se adquiriram os benefícios. — Disse Wapama com uma leve tristeza nos olhos e uma enorme vontade de chorar, pois, o que sua filha fez contra a pobre ave hospedeira, não se justifica, não se concebe e nem se admite. Foi uma autêntica vergonha para sua tribo.

Depois do sermão, Cacóngua ficou muito triste, arrependida e com muita vergonha. Deixou-se cegar pela inveja e, “desculpa” era a única palavra que lhe restava no seu dicionário.

Na manhã seguinte, Wimbo já se sentia totalmente curada para poder voltar à casa e então foi se despedir do Rei agradecendo pela hospitalidade em seu Reino. Despediu-se também de todo Reino cantando sua música favorita: “Ninguém caminha só, nem mesmo Deus, compreenda isso meu amigo, tu és o que eu não sou e eu sou o que não és, a diferença faz mundo… — e todos começaram a cantar com ela — como a noite e o dia, preto e branco, tristeza e alegria, riso e pranto, não se desvalorize por ser ou não ser, aceita-te como e o que você é…”

Depois de cantar, foi abraçar a senhora Wapama e deu-lhe um beijo da testa em gesto de respeito e gratidão por tudo que fez por ela. E finalmente ficou cara-a-cara com Cacóngua e não disse nada mais do que um simples convite para ir conhecer também seu Reino. Cacóngua depois do que fez, o mínimo que podia fazer era aceitar e passar mais um tempinho com sua amiga, quiçá daí viria o seu perdão.

Arrumaram suas malas e foram. Wimbo colocou Cacóngua na escosta, afinal o Reino Yo Keulo encontrava-se depois das núvens que se podiam ver nos céus e para Cacóngua tudo era novo. A viagem estava muito boa até que Wimbo começou a fazer manobras e muitos movimentos que denunciavam que queria deixar Cacóngua cair. Cacóngua estava com muito medo e pedia à Wimbo para não a matar ou deixá-la cair. Wimbo trancou seu rosto, subiu até a núvem mais alta do seu Reino e deixou Cacóngua cair…

Cacóngua descia em alta velocidade, não parava de pedir desculpas, perdão, clemência… tudo que lhe ocorria na cabeça ela dizia. Bem perto de tocar o chão, Wimbo a socorreu, colocou-lhe em terra firme e começou a rir.

— Vês? Ninguém é melhor que ninguém. Cada um é bom na sua zona de conforto. Eu tive muitas dificuldades para saltar de galho em galho na sua zona de conforto e você de forma injusta, desproporcional, quiseste apenas me humilhar e alimentar seu ego e agora deste conta o que aconteceu lá no meu Reino? ­— Dizia Wimbo com muita melancolia e reflexividade. — Você quase perdeu o fôlego e não conseguias fazer mais nada além de me agarrar com muita força. Onde estavam os teus braços para pegar nos galhos do meu Reino? Vês? Não menospreze ninguém por não saber fazer o que tu fazes, ninguém sabe tudo. Tudo que a gente faz, ser-nos-á cobrado um dia, como diz minha Mãe: aqui se faz, lá se paga. Nem sempre poderás pagar aqui os teus erros, as vezes será mesmo lá onde tu menos esperas. Então aprenda a fazer o bem sem se importar a quem.

E desde aquele dia, Cacóngua aprendeu uma das suas maiores lições de vida. Pois, todo mal que causamos ao nosso próximo, num futuro indefinido e num momento inesperado, pagaremos por ele.

POR: ARNALDO CORREIA

TRADUÇÃO - UMBUNDO

Wapama: Forte;

Yombembua: Paz, da paz.

TRADUÇÃO - NYANEKA-HUMBI

Cacóngua: Convidada, alguém que é convidada;

Mbândua: Pele extraída de um animal;

Yo Pofi: do Chão ou da Terra;

Yo Keulo: dos Céus;

Cuimba: Cantar;

MÚSICA: Pérola – Ninguém Caminha Só.

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