por Edgar Luluca, em 2025-09-07
O Jeito Alegre de Chorar: O Humor Negro como Escudo dos Angolanos
O Jeito Alegre de Chorar: O Humor Negro como Escudo dos Angolanos
O peso de um riso forçado
Há risos que nascem sozinhos. Risos que chegam no momento errado. Um funeral, um discurso político, uma fila interminável do banco onde a paciência extingue e ao chegar na sua vez o caixeiro diz que não tem sistema, e ao encontrar um segurança que solicita para lhe chamar chefe. É esse riso que nos define como angolanos: rir, mesmo quando não há motivo algum para rir. Talvez porque se não rirmos, choramos.
O humor negro tornou-se o nosso mecanismo de defesa. Tudo pela sobrevivência diária. Uma forma de suportar o insuportável.
O código das nossas piadas
Em Angola, basta uma palavra para todos entenderem. Quando dizemos simplesmente “ele”, não há dúvidas de que ele é o Presidente. Quando alguém atrasa e diz: “o trânsito estava rijo”, não é explicação, é piada pronta.
Esses risos são códigos encobertos. Uma linguagem cifrada que une desconhecidos. Não rimos da aflição em si, rimos porque é o único meio de a carregar.
A espiritualidade que atravessou o Atlântico
A folclorista Mona Lisa Saloy, no ensaio “Still Laughing to Keep from Crying: Black Humor”, mostra como entre afro-americanos de Nova Orleans, cidade de Louisiana onde muitos africanos, levados sobretudo no século XVIII, eram originários da região da África Central (actual Angola e Congo). O humor negro nasce como antídoto contra as mazelas raciais e sociais. Desde as primeiras paródias e contos, até às dozens (estigas: jogos verbais de insulto onde ganha quem aguenta mais provocações sem perder a calma), o riso sempre foi a resposta mais humana ao desumano.
As origens da valentia verbal dos afro-americanos deram lugar a insultos que endureciam os corações contra os abusos da sociedade. “A comida da sua mãe é tão má que a sua família reza após comer”. “A tua casa é tão pequena que, quando joguei uma pedra na janela, acertei em toda a família”. Crueldades convertidas em jogo. Um treino de resistência.
E nós, angolanos, não ficamos distantes dessa prática. Transformámos a sátira política, a ironia contra o custo de vida e a paródia da burocracia em mecanismos de sobrevivência.
Toma decisões com base na influência que possui?
Qualquer pessoa com acesso à rádio, à televisão ou às redes sociais já viu como o Gilmário Vemba, Bondoso, Tiago Costa, António Manuel “JoJo”, José Dange, Chocolate em Pó, Avô Rocha, Cólua Tremura, Ladilson Manuel, Scaitt Borrabeu, entre outros, transformam em piada aquilo que o povo comenta nas em casa e nas ruas. Esses comediantes não inventaram o humor angolano. Eles beberam de uma fonte antiga, feita de piadas sussurradas nas varandas da época do “meu puto não fala política”, ditos populares nas ruas poeirentas e das gargalhadas em funerais. O palco somente amplificou o que já era nosso.
Assim como nos Estados Unidos surgiram Dave Chappelle, Richard Pryor, Eddie Murphy, Kevin Hart, Katt Williams ou Chris Rock de uma tradição de dor e riso, em Angola os nossos comediantes contemporâneos representam a continuidade de uma cultura que insiste em transformar as nossas feridas em ironia.
O riso nos espaços mais pobres
Mesmo nas zonas mais esquecidas, nos bairros onde a pobreza aperta, ainda assim o rimos quotidianamente. Entre barracas de chapa e ruas lamacentas, ouve-se sempre alguém contar uma piada sobre a vida cara, sobre o patrão, sobre o governo, sobre o vizinho. O humor negro brota do chão árido, porque é das últimas riquezas que nos resta.
E é aí que ele mostra a sua maior força: rir como acto de fé. Fé em dias melhores.
Reflexão final
Rir da subida do combustível, do táxi, da constatação de que, mesmo num país rico, há pessoas que morrem de fome, do aumento da cesta básica, da falta de compreensão de que uma sociedade corrompida é o reflexo dos seus dirigentes ou promessas políticas.
Não porque seja engraçado, mas porque rir é mais suportável do que chorar. O humor negro é o nosso recurso mais antigo. É o que nos une e o que nos impede de desistir.
Mas, e no fim? E quando a risada termina e o silêncio regressa? O que fazemos com a dor que fica?
Por vezes penso que nós, angolanos, temos a mesma herança dos afro-americanos descritos pela Poetisa americana Mona Lisa Saloy: uma tradição de rir para não chorar, como prova de que não fomos vencidos. O riso como treino para enfrentar a brutalidade da vida.
E penso também que, entre nós, sempre haverá alguém numa esquina a transformar dor em anedota. Porque a vida angolana continua longe de deixar de ser complicada. Não existem respostas fáceis, por isso a cultura do humor negro continuam em erupção, criando em toda a sua complexidade.
Por fim, e por enquanto, penso que rir é o que nos mantém vivos. Talvez seja o nosso senso comum incomum. A nossa joie de vivre. A nossa alma colectiva.
Ser angolano é rir da vida diariamente, e espalhar esse riso de graça. Mesmo sem querer. Até mesmo sem energia. E talvez seja isso que me faz acreditar que, enquanto rirmos, ainda pertencemos mutualmente. Ainda somos um povo, ainda somos Angola.